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sábado, 12 de novembro de 2011

A Lei Seca aumentou a impunidade dos que bebem e matam no trânsito.

FICOU PIOR COM A LEI SECA

A lei criada para apertar o cerco em torno de quem guia bêbado não só não conseguiu frear a irresponsabilidade no trânsito como tornou mais difícil a punição dos infratores

          Uma pessoa que vai para a rua armada e passa a atirar a esmo deve ser punida por sua atitude ou apenas se acertar alguém?
          A resposta é óbvia. Assim como quem dirige embriagado, quem sai disparando um revólver pela cidade precisa ser impedido imediatamente, já que está pondo vidas em risco.
          No Brasil, porém, dirigir bêbado é um crime só punido quando resulta em tragédia. E, ao contrário do que ocorre na maior parte das vezes, a culpa por isso não é da frouxidão da lei, mas do seu rigor.
          A cada treze minutos, uma família brasileira chora a perda de um parente morto em um acidente nas ruas ou estradas do país. O Brasil ostenta o triste título de detentor de um dos mais altos índices de mortes no trânsito por habitante. Na última década, o número de mortes subiu mais de 30% – e não se pode atribuir essa escalada apenas ao aumento da frota nacional (mais do que duplicada no período) e às lamentáveis condições das vias.

40% dos acidentes com mortos envolve consumo de álcool

          Estudos recentes feitos em São Paulo e no Distrito Federal mapearam os casos de acidentes de trânsito com vítimas fatais. Em 40% dos episódios, a pessoa que morreu – o motorista, o passageiro ou o pedestre – havia consumido uma dose elevada de álcool. E, quando se fala em “dose elevada”, quase sempre se está falando mesmo é de grossa bebedeira.
          Em 2007, uma pesquisa do governo federal descobriu que, entre as pessoas que admitem beber e dirigir, mais de 80% o fazem depois de ingerir, no mínimo, três doses de álcool. No ano passado, outro levantamento reforçou a gravidade do problema: 18% dos brasileiros declararam ter bebido cinco ou mais doses em uma única noitada no mês anterior. Desses, 10% admitiram ter voltado para casa guiando.
          Se essa porcentagem, alta para os padrões de países desenvolvidos, não chega a chocar, é difícil ficar indiferente às imagens que ela produz – como a da carcaça retorcida do Camaro vermelho que ilustra estas páginas. Ao volante, estava o estudante Felipe de Lorena Infante Arenzon, de 19 anos. Depois de beber numa casa noturna de São Paulo, ele saiu guiando em um tal estado de alucinação que, em um espaço de uma hora e meia, causou uma sequência de seis colisões e dois atropelamentos.
          Na última etapa de seu tour ensandecido, bateu contra um Palio e uma Towner. No segundo carro estava o motorista Edson Domingues, de 55 anos, que morreu em decorrência do acidente depois de permanecer cinco dias internado na UTI, com 90% do corpo queimado.
          Especialistas concordam: o caminho mais eficiente para evitar tragédias como essa é a punição rigorosa dos infratores – tenham eles feito vítimas ou não. Há três anos, a Lei Seca foi promulgada com esse objetivo. Uma mistura de equívocos e inconsistências legais, porém, acabou fazendo com que ela surtisse um efeito diametralmente contrário. A principal mudança – que era para ser boa, mas terminou sendo ruim – foi a definição legal do que é embriaguez ao volante.
          Antes, para que um motorista fosse considerado embriagado, bastava que um policial detectasse nele sinais de bebedeira – que continuam a ser os mesmos desde que a humanidade registrou seu primeiro porre.
          A Lei Seca alterou essa regra ao estabelecer um nível preciso de álcool no sangue, a partir do qual o motorista abordado pela autoridade policial passa a ser considerado técnica e legalmente bêbado – 0,6 grama de álcool por litro de sangue, o equivalente a três latas de cerveja.

Ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo

          O objetivo da mudança era fixar um limite propositalmente baixo de modo a fazer com que até um pileque leve pudesse ser punido. Mas os legisladores foram traídos pelo seu próprio rigor. Se antes a embriaguez podia ser constatada – e legalmente declarada – por um simples trançar de pernas ou uma dificuldade de pronunciar palavras com mais de uma sílaba sem moê-las nem borrifar perdigotos, passou a ser necessário submeter o suspeito a um exame, de sangue ou de bafômetro.
          Ocorre, porém, que, se o motorista não quiser fazer os testes, ninguém pode obrigá-lo, já que, no Brasil, não se pode forçar alguém a produzir provas contra si mesmo.

Consequência pífias — e marotagem

          A marotagem pegou. No Rio de Janeiro, por exemplo, desde 2009, 40 000 pessoas se recusaram a soprar o bafômetro – 7% do total de motoristas abordados. As pífias consequências resultantes da recusa acabam por estimulá-la – limitam-se ao pagamento de uma multa de 957 reais e à suspensão da carteira de habilitação, em geral, por cinco dias.
          Foi o que ocorreu com o motorista do Camaro vermelho, responsável pelos acidentes em série. Depois da última colisão, ele tentou fugir a pé. Preso em flagrante, recusou-se a fazer o teste do bafômetro, pagou a fiança e hoje responde em liberdade.
          “Precisar o limite da embriaguez e condicionar sua detecção ao exame do bafômetro é uma das mais graves falhas da legislação”, diz o procurador de Justiça paulista Mário Sarrubbo, mestre em legislação de trânsito. “Com as brechas que elas abrem, o motorista entende que dirigir bêbado não tem consequência alguma.”
          Nos Estados Unidos, dirigir depois de beber é crime punido com cadeia. Quando o policial aborda um motorista suspeito, conclui se ele bebeu ou não aplicando testes na rua, como os que se veem nos filmes: o condutor tem de provar que consegue se equilibrar em uma perna e andar em linha reta. Se bambear, vai algemado para a delegacia.
          Lá, pode até se recusar a soprar o bafômetro, mas será indiciado do mesmo jeito, graças ao mecanismo da “culpa presumida”. Um caso exemplifica o rigor com que os americanos tratam a questão. Em 2009, Bobby Joe Stovall, de 54 anos, dirigia seu caminhão no Texas e se envolveu em um acidente.
          Havia ingerido uma quantidade de álcool quatro vezes mais alta do que a permitida no Estado. Como foi a nona vez que Stovall foi pego dirigindo bêbado, o juiz o sentenciou à prisão perpétua. Entendeu que era a única forma de impedir que ele continuasse ameaçando vidas. Stovall está preso até hoje.

O futuro da lei está no Supremo

          Na Europa, a tolerância em relação a esse tipo de conduta também é baixa. Na Espanha, quem dirigir com taxa de 1,2 grama ou mais de álcool por litro de sangue perde a habilitação por até quatro anos e pode passar seis meses na prisão. Negar-se a fazer o teste do bafômetro ou o exame de sangue é crime punido com cadeia, de seis meses a um ano.
          Em Portugal, a pena varia. Se o condutor bebeu, mas não fez barbeiragens, a punição é de até um ano de cadeia. Se fez, até dois anos. Não fazer o teste do bafômetro é crime de desobediência e também dá prisão. Na Inglaterra, quem se recusa a soprar o aparelho na rua paga multa de 1 000 libras e perde o direito de dirigir por até três anos.
          No Brasil, o futuro da Lei Seca está nas mãos do Supremo Tribunal Federal. Uma ação direta de inconstitucionalidade questiona o artigo que fixa o limite de álcool no sangue e a possibilidade de recusa do teste do bafômetro. Para o relator, o ministro Luiz Fux, trata-se de um dos casos mais importantes da corte: “Precisamos impedir a perda de vidas em razão da imprudência daqueles que não observam os próprios limites”. Para que isso seja possível, o único caminho é punir os infratores – de preferência, antes que as tragédias se consumem.

          “Minha equipe atende a quinze ocorrências no trânsito por dia – dessas, pelo menos seis envolvem álcool. Um caso me marcou, há três anos. Dois garotos conheceram duas meninas numa balada na Vila Olímpia [bairro de São Paulo repleto de casas noturnas] e deram carona a elas. Às 5 horas da manhã, o rapaz que estava no volante perdeu o controle da direção em alta velocidade e subiu na calçada.
          Chegou a arrancar uma lixeira de concreto. Perto do carro, vimos várias latinhas de cerveja, ainda suadas. Uma das meninas voou quase 30 metros pelo vidro traseiro. Ela ficou parecendo uma boneca de pano: a perna estava perto da nuca. Não sabia nem o nome dela, mas tive de pegar seu celular e ligar para o pai para dar a notícia. Já perdi a conta de acidentes causados pela bebida. Toda semana a história se repete.”
Ricardo Lucarelli, 31 anos, bombeiro

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